terça-feira, 17 de janeiro de 2012

EXCERTO DO CAPÍTULO 1

«Quando tinha nove anos, Ricardo descobriu que era um viciado em café. A descoberta foi casual – motivada pela curiosidade que o caracterizava quando criança – mas, desde então, ficou enfeitiçado por aquele sabor único.
O seu mentor ensinara-lhe que para apreciar algo era preciso conhecê-lo verdadeiramente; era preciso estudar o objecto do nosso fascínio afim de percebermos o que nele nos cativava. Para melhor a apreciar, Ricardo estudou tudo o que havia a estudar sobre essa bebida que é o café.
Aprendeu acerca do sabor, das origens, assim como todas as formas de confecção possíveis e imaginárias. Descobriu que o café tinha origens árabes, que durante a Guerra Civil Americana os soldados transportavam café para os campos de batalha como alimento de primeira necessidade e que, como produto de importância global, era ultrapassado apenas pelo petróleo.
Aprendeu também o quão significativas podiam ser as suas influências culturais e sociais. A título de exemplo, Bach compôs uma cantata dedicada ao café e em Itália o café era considerado tão essencial à vida diária que era o próprio governo que estipulava o preço de venda.
Nos últimos três séculos, noventa por cento da população ocidental mudou do chá para o café. Ricardo sabia que o chá também tem cafeína, a chamada teína, mas para Ricardo o sabor do café era único.
Só depois de saber tudo isso, é que Ricardo bebeu café pela segunda vez.
O gosto pelo café sempre fora um elemento importante na vida de Ricardo, porém, ele mantinha esse gosto para si. Não se dava ao luxo de grandes extravagâncias. O seu bom gosto era suficiente para ter cuidado com a imagem e não aparentar o ridículo. Más coisas poderiam acontecer se ele não fizesse isso.
Para Ricardo, o café era uma bebida – uma bebida que ele adorava e sobre a qual sabia tudo, mas ainda assim – apenas uma bebida.
Gostava do café como bebida, digestiva, refrescante, estimulante, o que fosse. Um facto curioso que descobrira durante as suas pesquisas: exceptuando a temperatura, as outras faculdades do café só tinham efeito nele caso ele deixasse.
Isso deixava-o dividido. Por um lado, sentia-se especial na certeza – relativa, sublinhe-se – de que isso só acontecia com ele. Por outro lado, ter algo que o tornasse muito diferente dos demais, não lhe agradava muito.
Talvez não fosse só ele. Precisava de acreditar nisso. Talvez todas as pessoas tivessem essa capacidade de filtragem dentro delas. Cada uma reagindo a determinada característica.
Ou talvez o seu organismo estivesse já tão habituado ao café que a única coisa que ainda conseguia registar era o sabor e a temperatura.
Para muitas pessoas beber café era um acto mecânico. Algo que as juntava em grandes aglomerados, mas que não as acalmava, apenas as fazia ficarem nervosas e apáticas. Até que, por fim, o organismo se habituava tanto à substância que deixava de reagir e o café tornava-se um vício para a mente. Desde que iniciara a sua jornada no mundo da cafeína, Ricardo observara este padrão comportamental ocorrer sem grandes alterações.
De todos os estabelecimentos que visitara desde que iniciara essa sua jornada, aquele era sem dúvida o seu preferido. Um local longe da sua casa, é certo, mas que tratava o café como Ricardo achava que este o merecia: com respeito e dedicação. Ricardo admirava a grande variedade de cafés, sabores e combinações que ali estavam disponíveis. A sua preferida era o cappuccino.
Durante os seus estudos, aprendera que existem várias maneiras de preparar o cappuccino. Algumas pessoas juntavam chocolate, outras canela. Havia ainda quem preferisse só leite; por leite, leia-se natas. A temperatura era outro factor a ter em consideração na confecção desta bebida. Alguns preferiam o leite frio, quase gelado, outros, bem quente.
Para ele, a combinação perfeita era café bem quente com leite frio. Apreciava as propriedades estimulantes do café aliadas às propriedades calcificantes do leite. Recentemente – cerca de dois meses – descobrira que gostava de usar um pau de canela para mexer o café. Nunca prestara muita atenção às modas, ou às suas tendências, por isso o uso de canela era apenas motivado por escolha pessoal e nunca por qualquer opinião popular.
A canela dava um gosto diferente à bebida. Diferente e, ao mesmo tempo, estranho. Não se conseguia decidir se era bom ou mau, era estranho. Esse era um problema de muita gente – não saber tomar uma decisão sem ter tomar um ponto de comparação. Ricardo pertencia a esse género de pessoas.
Por vezes, esta sua peculiaridade comportamental tornava-se incómoda; na maioria das vezes, felizmente, era algo que o ajudava no seu trabalho. Cada trabalho era comparado ao anterior, tanto para o melhor como para o pior e isso fazia-o rever os seus erros.
Era uma fuga à rotina. Quem caía na rotina, caía no desleixo. Muitas vezes ouvira dizer isso. Todos os grandes profissionais – fossem de que áreas fossem – diziam isso. A rotina vicia o corpo e retarda os reflexos, faz o cérebro ficar mais lento.»

Um Cappuccino Vermelho (Capítulo 1)

Sem comentários:

Enviar um comentário