sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

E ASSIM COMEÇA (EXCERTO DO PRÓLOGO)

«à distância ouvia-se o som distinto de tiros, seguidos de gritos de reprovação ou de encorajamento. Depois do ruído vinha a calma, sucedida por mais tiros, mais gritos e mais calma.
Luís fechou os olhos, ajeitou a almofada e tentou dormir. Continuava a ouvir os tiros e os gritos. Tapou a cabeça com a almofada para abafar o som, mas foi em vão.
Tinha quase cinquenta anos, estava com o Grupo desde que se lembrava e com aquele parceiro há quase trinta. Três décadas a trabalharem juntos e Luís continuava sem perceber: por que razão o seu parceiro insistia em treinar sempre àquela hora?
Farto de estar ali, Luís levantou-se e saiu da tenda.
Estava uma noite fria e sem lua. Os tiros e os gritos haviam cessado por ora. Ele sabia que iriam recomeçar muito em breve. O rito era o mesmo quase todas as noites.
Aguardou por um som que lhe revelasse onde estava quem ele procurava. O que ele menos queria fazer era começar a reclamar para onde não estava ninguém.
Veio nova sequência de disparos.
Luís esperou que os tiros parassem. Depois esperou que passassem os gritos. Só depois falou.
“Sabes que horas são? perguntou, irritado.
“O rapaz precisa de treinar,” respondeu-lhe uma voz a partir da escuridão. “Senão nunca atingirá o seu potencial máximo.”
“Ao menos usem um silenciador. Deixem-me descansar um pouco.”
O descanso é sobrevalorizado,” respondeu a mesma voz.
Luís desistiu. Era escusado. Deu meia volta e regressou à tenda.
Dias antes, por acidente, descobrira algo sobre o seu parceiro que o deixara preocupado. Sabia que ele era um bom agente, sempre disposto a cumprir a missão do Grupo sem hesitar. Luís suspeitava que ele fazia isso, não por um honrado sentido de dever mas, por pura satisfação pessoal.
A sua descoberta havia-lhe revelado que a satisfação pessoal era o menor dos seus motivos. A sua agenda era desconhecida, mas temia que não fosse coisa boa.
Ricardo era ainda uma criança, a sua personalidade estava em fase de desenvolvimento. A expressão potencial máximo referida em relação ao elemento mais novo do Grupo causava-lhe um arrepio na espinha.. Luís não se costumava assustar facilmente, porém as coisas tinham mudado.
Existiam poucas certezas quanto às origens de Ricardo, mas era inegável que ele era uma criança especial. Agora que Luís sabia que o seu parceiro preparava algo e que Ricardo podia ser uma peça fundamental desse plano, era importante protegê-lo.
E durante os vinte anos seguintes seria exactamente isso que ele faria.»

in Um Cappuccino Vermelho

Sem comentários:

Enviar um comentário